Natal, a cidade protagonista das manifestações de junho de 2013 que deixaram perplexo o Brasil.
A nossa cidade esteve na liderança da
luta pela redução da tarifa dos transportes coletivos urbanos do país. A
vitória das manifestações que, por três vezes, conseguiu barrar o aumento da
tarifa estimulou a luta nas cidades de diversas regiões do Brasil.
Essa influência mereceu destaque da
mídia internacional através do jornal norte-americano New York Times, o qual
noticiou o pioneirismo do movimento Revolta do Busão.
Tal movimento exerceu um efeito
dominó em mais de cem cidades, numa gigantesca mobilização de massa que
originou diversas teorias sociopolíticas sobre o fenômeno mais conhecido pelos
analistas sociais como Jornadas de Junho. Esse termo cognominado para as
manifestações nos parece uma hipostasia inspirada na obra de Karl Marx, O
Dezoito Brumário, que trata da revolução operária de junho de 1848, em Paris,
quando os trabalhadores tomaram de assalto o parlamento.
Os analistas políticos e os partidos
de esquerda fazem uma alusão ao fato histórico contemporâneo como se vivêssemos
algo semelhante ao Quarente-Huit francês, esquecendo-se da frase de Marx, dita
a Hegel: primeiro a história acontece
como tragédia e se repete como farsa.
As manifestações de junho de 2013
carecem de forma e conteúdo político para merecerem tal alusão, segundo o
princípio clássico de que só há revolução com forma e conteúdo revolucionário.
Portanto, seria um equívoco político-sociológico caracterizá-las de jornada.
A superestimação política das
manifestações nos reporta ao axioma persa: a
montanha pariu um rato. Como se sabe, um rato entre a manada causa muito
barrido, dessa maneira ocorreu com as manifestações.
Além da perplexidade com o espontaneísmo
de massa, houve um grande alarido em torno desse fenômeno social, tanto no
sentido de revolucioná-lo, quanto da sua criminalização, ao confundir as pautas
táticas e estratégicas, da condução das lutas.
As mobilizações, taticamente, tinham
um caráter economicista, por estarem direcionadas contra o aumento da tarifa,
que compromete em 35% o orçamento doméstico das famílias trabalhadoras. Por sua
vez, todas as energias do movimento estavam concentradas na ação direta nas
ruas, com o objetivo de barrar o aumento.
Quanto a esse objetivo, a luta saiu
vitoriosa por todas as cidades do país com a perspectiva de avanço nas lutas
até a conquista de uma política de mobilidade urbana que efetive a
constitucionalidade do transporte como um direito social, público, gratuito e
extensivo a toda a população, sem restrições, de acordo com o princípio do
direito universal à cidade.
Essa é a bandeira do Movimento Passe
Livre, que teve sua grande expressão no ano de 2003 com a Revolta do Busu, em
Salvador. Ideia aceita em seguida pelo movimento estudantil do sul do país e
difundida pelos demais estados, até resultar num projeto político para o
Brasil, no que diz respeito à mobilidade urbana.
Esse não foi o entendimento da mídia
burguesa. A Rede Globo, através do seu comentarista político Arnaldo Jabor,
além de tergiversar e criminalizar as manifestações, fez, críticas sarcásticas
e desairosas aos manifestantes, afirmando serem pequeno-burgueses, que não
valiam vinte centavos.
Diante dessas críticas estapafúrdias,
os internautas postaram nas redes sociais que não saíram às ruas apenas contra
o aumento de vinte centavos no preço da passagem, a luta era mais ampla, de
questionamento e supressão da lógica atual, de privatização de um direito
essencial da sociedade.
Pressionado pela indignação popular
nas redes sociais, o comentarista global fez sua autocrítica. A Rede Globo
capitalizou a mobilização de massa, dando-lhe um caráter de reivindicação difusa,
de inspiração moralista e patriótica, com o slogan midiaticamente trabalhado: o gigante acordou.
Tal desgaste teve dois fatores
importantes: a frustração do povo em relação às políticas do PT e as denúncias
de corrupção envolvendo o governo, que levou a uma onda avassaladora de
descrença e ojeriza aos políticos e seus partidos, com mais evidência aos que
estão representados no governo.
A direita capitalizou o sentimento
das massas por um viés futebolístico e patriótico, ressignificando suas
pulsões, direcionando-as para um pertencimento de orgulho nacional, evidenciado
na canção entoada pelo segmento mais precarizado dos manifestantes: eu sou brasileiro, com muito orgulho, com
muito amor!...
O ufanismo foi usado como um
instrumento de alienação política com o objetivo de somatizar as contradições
de classe e a condição de precarização da juventude periférica,
proporcionando-lhe uma elevada autoestima, que só a subjetividade, o imaginário
de grandeza da alma patriótica, produto de uma sociedade reificada, isto é,
alienada, pode lhe oferecer.
A ideia de pertencimento exclusivo à
condição de patriota induz à hostilização de outros grupos com ideologias
diferentes, vistos como apátridas, verdadeiros inimigos, por identificarem-se
com as bandeiras de suas lutas, as lutas históricas da classe trabalhadora,
sobrepujando o sentimento “maior” de patriotismo, representado pelo símbolo da
bandeira nacional. Seus adeptos, numa turba enfurecida, mais radicais que seus congêneres ideológicos coxinhas, pois
se contentavam em transformar as manifestações num ato cívico-quermesso-midiático,
livre de qualquer conflito.
Quanto à esquerda, a qual teve um
papel importante nas manifestações, que historicamente empunhou a bandeira das
causas sociais, encontrava-se aviltada diante de tamanha agressividade, ironicamente,
através daqueles mais explorados da sociedade, que ela tanto defende, embasada
na filosofia do vir a ser, que substancia a luta de classe e, naquele momento,
foi suplantada pelo atavismo pátrio, estimulado pelos meios de comunicação que
perigosamente alimentavam o inconsciente coletivo das massas.
O estímulo à paixão é próprio dos
manipuladores, cuja função política consiste na regressão psicológica das
massas ao estado infantil de histerismo contra um inimigo construído,
“responsável” por suas frustrações, portanto, vítima de todo o seu ódio. Tal exemplo
já foi vivido por nós no passado histórico recente do país, de triste memória,
quando essa prática política foi uma estratégia de terrorismo de estado.
A mídia, a mesma de antanho,
manipulou mentes e fatos. O que seria uma grande manifestação com foco no
transporte urbano, no direito à cidade, na constitucionalidade do ir e vir, foi
transformada numa Babel de reivindicações espontâneas, sem um histórico social
de lutas, ou quando não, propondo defesa de interesses corporativistas em detrimento
do interesse de toda a sociedade.
A ideologia burguesa implodiu o
movimento, descaracterizando a hegemonia da luta de classe implementada através
da luta pelo Passe Livre, luta essa que tem antecedentes históricos na bandeira
levantada na América Latina em meados do século XIX, na Argentina, vindo a ser
realidade no Brasil, na década de 30 do século XX, na cidade de Natal.
Historicamente, para os setores
sociais conservadores, o espectro do Passe Livre ronda a cidade potiguar. Foi
aqui, onde existiu o mais moderno sistema de bondes implantado no país, controlado
por uma companhia inglesa, que aconteceu a primeira experiência do transporte
público sem tarifa no Brasil, quiçá, na América Latina.
Essa experiência ocorreu por meio de
um levante no exército, de inspiração comunista, referido pelos conservadores
de Intentona Comunista e pela esquerda, de Revolução de 1935, que deixou
profundas marcas na memória e no sentimento dos natalenses.
O primeiro ato de abrangência popular
decretado pela Junta Revolucionária, através do seu ministro da viação, João
Galvão, foi a circulação livre de tarifas nos bondes da cidade, que perdurou
por 72 horas, tempo da existência da Junta, até ser completamente derrotada
pelas forças reacionárias da repressão burguesa.
Setenta e oito anos após a
experiência de Tarifa Zero no país, a cidade protagoniza um movimento de
repercussão internacional que resultou na aprovação da PEC 90-11, cuja emenda
constitucional trata o transporte como um direito social, viabilizando, por sua
vez, uma Política Nacional de Mobilidade Urbana, através da Lei nº 12.587/12.
O Movimento Revolta do Busão acha
factível a Tarifa Zero. É questão apenas de vontade política. O que em Natal,
no século passado, foi conquistado pela imposição das armas, hoje, no século
XXI, foi conquistado pela presença das massas nas ruas, pois como sabemos, há
onze pequenas cidades brasileiras que, pela via democrática, já instituíram a
Tarifa Zero, cidades essas todas situadas nas regiões Sul e Sudeste do Brasil.
Quantas “jornadas de junho” haveremos
de fazer até a universalização da Tarifa Zero no país, que pantagruelicamente
refestela-se no mar de lama da corrupção, impedindo o seu povo do direito
universal à cidade?
Natal, 16 de dezembro de 2014.
Edilson Freire Maciel
Articulista